domingo, 25 de abril de 2010

Alteridade: o outro é tão sagrado e dotado de dignidade e direitos quanto eu.

Fazer e pensar o cinema, escrever contos e poemas, dar aulas.

A principal dimensão com a qual tenho que lidar atualmente é com a noção de alteridade, pra agir esteticamente, agir eticamente, pensar intelectualmente.

Pensando quem sou eu e quem é o outro com o qual me relaciono e interajo, consigo definir melhor minha concepção de linguagem e propor expressões que lidem e evidenciem essa relação. Esse tem sido meu principal desafio nos meus projetos de curtas e documentários nos últimos anos.

Tomo pra diálogo o texto do Frei Betto, no http://www.freibetto.org/index.php/artigos/72-alteridade . Penso um pouco essa relação

"O que é alteridade? É ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Quanto menos alteridade existe nas relações pessoais e sociais, mais conflitos ocorrem."

é impossível pra nós, seres humanos, vermos o outro. Falo desse hiato que a cristandade explica como o Pecado Original, a Queda, os 3 primeiros capítulos do Gênesis: o hiato do homem consigo mesmo, do homem com o outro, do homem com a natureza e do homem com o Sagrado.

Fomos expulso desse Paraíso e só a devida compreensão da extrema complexidade, seriedade e necessidade de Deus encarnar-se, morrer e ressuscitar nos põe de volta rumo a esse paraíso.

Compreender, quero dizer, depender de Jesus Cristo pra ser Ele, como Ele, nEle pra sempre, nus, sem ter medo de expormos nossas vergonhas, nossos medos, nossas contradições. Nunca.


"A nossa tendência é colonizar o outro, ou partir do princípio de que eu sei e ensino para ele. Ele não sabe. Eu sei melhor e sei mais do que ele... É evidente que nós sabemos algumas coisas e, aqueles que não foram à escola, sabem outras tantas, e graças a essa complementação vivemos em sociedade.
 
...perguntar quem pode prescindir do conhecimento do outro, tenho certeza de que não posso prescindir da culinária dela para sobreviver. E ela, seguramente, pode prescindir da minha filosofia e teologia para sobreviver. 

....meninões infantilizados, que não conseguem lidar com o conflito, discutir com o colega de trabalho, receber uma advertência do chefe e, muito menos, fazer uma crítica ao chefe. "


Queremos ser deuses, mas não sabemos o caminho, e achamos que é preciso desbancar Deus, usurpá-lo e nem sabemos como isso é difícil. E assim usamos Deus pra usurparmos Deus.

"A nossa relação com a natureza é de sujeito para objeto. Só temos relação de sujeito a sujeito, como o índio tem, até os cinco anos de idade. Veja o exemplo de uma criança lidando com um cachorro bravo. Ela monta no cachorro como se fosse cavalo, enfia a mão na boca, sem risco, porque o cachorro percebe que a relação é de alteridade. É de sujeito para sujeito. 
 
A partir dos cinco anos, perdemos a alteridade frente ao animal e ele percebe. A relação passa a ser de sujeito para objeto. O índio não. Ele mantém com a árvore, o rio, a mata, uma relação de sujeitado para sujeito"

Usamos os outros, a natureza, o nosso corpo, a nossa energia, a religião, a arte, a ciência, o dinheiro, o sexo, a cirurgia plástica, o tempo pra sermos deuses..


"Quem dera que fosse levada à prática aquela idéia de, pelo menos a cada três meses, cada setor de trabalho da empresa fazer uma avaliação, dentro da metodologia de crítica e autocrítica. E que ninguém ficasse isento dessa avaliação. Como Jesus um dia fez, ao reunir um grupo dos doze e perguntar: “O que o povo pensa de mim?” E depois acrescentou: “E o que vocês pensam de mim?” 

Quem de nós é capaz disso? Sempre acho que o outro pensa de mim aquilo que eu gostaria que pensasse. E morro de medo de ele falar aquilo que realmente pensa. Por isso mantenho o meu ego aprumado, pois, se ele falar, verei no olhar dele uma imagem que não é aquela que eu gostaria de projetar. 

Nossas concepções éticas são forjadas por um processo social onde o capital, um bem finito, tem mais prioridade do que os bens infinitos - a dignidade, a ética, a liberdade, a paz, a experiência espiritual etc.

Estamos perdendo a vida interior, e entrando em outra anomalia, a hipertrofia do olhar e a atrofia do escutar. Estamos perdendo a experiência do silêncio. A perda da experiência do silêncio é a perda da possibilidade de encontro consigo mesmo. Quanto menos apreensão tenho do meu ser, mais dependente fico do meu ter. A ponto de a relação ser humano-mercadoria-ser humano se inverter. Passa a ser mercadoria-ser humano-mercadoria. Se chego na sua casa de BMW, tenho um valor A. Se chego de ônibus, eu tenho um valor Z. Sou a mesma pessoa, mas a mercadoria que reveste o meu ser humano passa a ter mais valor do que eu, e passa a me imprimir valor. É a síndrome da grife. O bem que eu porto é que imprime valor à minha qualidade como ser humano."



Deus resolveu deixar essa trajetória no nosso DNA. Mas Deus também resolveu se tornar humano, pra expandir a Si mesmo em nós, nos chamando a Ser como Ele, a ser Ele, numa jornada que nos deixa a todos meninamente impacientes.

"o outro é tão sagrado e dotado de dignidade e direitos quanto eu"
 
Eis a dificuldade que temos de entender o outro na sua dimensão. Mesmo nas filosofias progressistas, há sempre alguém marginalizado. O marxismo, por exemplo, convoca a classe trabalhadora como sujeito histórico, mas não os índios, não os desempregados, que no século passado eram chamados de lumpemproletariado. Em todas as culturas há sempre um setor secundário, considerado objeto, não sujeito histórico. 
 
Quem, a meu ver, na cultura ocidental, melhor enfatizou a radical dignidade de cada ser humano, inclusive a sacralidade, foi Jesus. O sujeito pode ser paralítico, cego, imbecil, inútil, pecador, mas ele é templo vivo de Deus, é imagem e semelhança de Deus. Isso é uma herança da tradição hebraica. Todo ser humano, dentro da perspectiva judaica ou cristã, é dotado de dignidade pelo simples fato de ser vivo. Não só o ser humano, todo o Universo. Paulo, na epístola aos romanos, assinala: “Todo a Criação  geme em dores de parto por sua redenção". Os católicos rezam no Credo "creio na ressurreição da carne". Hélio Pellegrino dizia que não há nada mais revolucionário do que proclamar a ressurreição da carne. Portanto, a ressurreição não é do espírito. A carne representa a materialidade do Universo. 
 
A nossa humanidade é muito recente, neste Universo de 15 bilhões de anos. Há apenas 2 milhões de anos apareceu o ser humano. É absurdo achar que esse modelo neoliberal de sociedade é definitivo. Basta dizer que um fator tão natural e elementar, como a necessidade animal de comer, ainda é  privilégio entre os 6 bilhões de habitantes do planeta. Sobretudo no Brasil. Aqui o escândalo é maior. Estamos entrando no século XXI, convivendo com a fome num país que tem potencial de três colheitas por ano. Os europeus estão vindo plantar uva em Pernambuco, porque em nenhum lugar da Europa dá, como ali, duas ou três safras de uva por ano. Somos o maior produtor mundial de frutas, o sexto produtor mundial de alimentos, e possivelmente o único país do planeta, com dimensão continental, sem nenhuma catástrofe natural. 



 Quer ser Deus? aprenda a depender do Outro, da História, dO que Virá. Aprenda a Incompletude e deseje a Completude pelos caminhos ambíguos, contraditórios e mascarados em que ela se esconde. 

A Verdade nunca é de ninguém: Ela se dá em partes pra que a Plenitude seja comunitária, solidária, dependente. 
 
 
 Como os povos indígenas têm pouca relação com o espelho, possivelmente têm essa possibilidade de desenvolver o olhar para o outro, mais do que para si mesmo. Isso deve ter alguma influência. É uma experiência empírica minha. Mas que me levou a pensar o seguinte: “Como me espelho no olhar do outro? Como o outro se espelha no meu olhar?” Só posso saber isso pelo caminho mais curto - o diálogo, que  é a possibilidade de expressarmos o que somos e sentimos, mais do que aquilo que pensamos. E, através dessa expressão, começarmos a apreender a riqueza do grupo social, da comunidade que nós formamos. 


Deus tem paciência com quem não é Ele, com quem não acredita nEle: as reações químicas, os processos neuronais, a Vida continua acontecendo, apesar disso... por que a Igreja não é assim? por que não permitir que outros tenham vida e vida na pequena e mirrada abundância que os "cristãos" têm? sejam casais gays, sejam macumbeiros, sejam satanistas, Deus sustenta a todos, dá Vida a todos, e age em todos... NEle nos movemos e NEle existimos. Há um Caminho melhor? só se eu experimentar esse caminho melhor... apenas falar dele, não convence...


"Dentro desse quadro, o desafio que se coloca para nós é como transformar essas cinco instituições pilares da sociedade em que vivemos: família, escola, Estado (o espaço do poder público, da administração pública),  Igreja (os espaços religiosos) e trabalho. Como torná-los comunidades de resgate da cidadania e de exercício da alteridade democrática? O desafio é transformar essas instituições naquilo que elas deveriam ser sempre: comunidades. E comunidades de alteridade. 
 
 Aqui entra a perspectiva da generosidade. Só existe generosidade na medida em que percebo o outro como outro e a diferença do outro em relação a mim. Então sou capaz de entrar em relação com ele pela única via possível – porque, se tirar essa via, caio no colonialismo, vou querer ser como ele ou que ele seja como sou - a via do amor, se quisermos usar uma expressão evangélica; a via do respeito, se quisermos usar uma expressão ética; a via do reconhecimento dos seus direitos, se quisermos usar uma expressão jurídica; a via do resgate do realce da sua dignidade como ser humano, se quisermos usar uma expressão moral. Ou seja, isso supõe a via mais curta da comunicação humana, que é o diálogo e a capacidade de entender o outro a partir da sua experiência de vida e da sua interioridade. 
 
A nossa identidade é construída pela nossa história. A minha história é a minha história, e ninguém terá uma história idêntica à  minha. E é isso que faz a minha identidade."



Pra mim, a arte, o cinema, a literatura é isso: ver a si mesmo no outro. Ver o outro em si mesmo, em mim mesmo, ambígua e parcialmente. Um espelho antigo, tecnologicamente atrasado, mas ainda assim, um espelho.

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