Luiz Carlos Martins de Souza
Professor do Departamento de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutorando em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista RH-Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Possui graduação e Mestrado em Letras pela UFAM, onde também estudou Comunicação Social/Jornalismo. Desenvolve trabalhos na relação entre linguagem verbal e audiovisual, a partir da perspectiva da Análise de Discurso Materialista, e atua como documentarista, curta-metragista e roteirista. Atualmente, além de se dedicar para o doutoramento, está dirgindo o documentário “Gays, graças a Deus” e co-dirigindo “Lugar Comum” e “Loucossões”.
Resumo
Este trabalho se propõe a fazer, a partir dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso Materialista, uma comparação entre o argumento, o quarto tratamento, o roteiro publicado e o registro em DVD do filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., observando alguns aspectos significantes, como os nomes dos personagens, e os deslizes metafóricos na elaboração do seu clímax, para daí tecer considerações a respeito do funcionamento da linguagem audiovisual e da forma de constituição de um sujeito que é interpelado na ilusão de onipotência, onisciência e onipresença, afetado, portanto, pelo discurso religioso, que esse tipo de materialidade demanda.
Palavras-chave: análise fílmica; filme Central do Brasil; análise de roteiro cinematográfico.
Abstract This paper aims to do, based on theoretical perspective of Materialist Discourse Analysis, a comparison of the argument, the fourth treatment, the published screenplay and the DVD movie of Central Station, by Walter Salles Jr.. It explore some aspects of the signifier, as the names of the characters, and the metaphorical substitution in the construction of its plot point, then to make some observations about the functioning of the audiovisual language and the constitution of a subject that is approached in the illusion of omnipotence, omniscience and omnipresence, affected by the religious discourse, that such materiality demand.
Professor do Departamento de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutorando em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista RH-Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Possui graduação e Mestrado em Letras pela UFAM, onde também estudou Comunicação Social/Jornalismo. Desenvolve trabalhos na relação entre linguagem verbal e audiovisual, a partir da perspectiva da Análise de Discurso Materialista, e atua como documentarista, curta-metragista e roteirista. Atualmente, além de se dedicar para o doutoramento, está dirgindo o documentário “Gays, graças a Deus” e co-dirigindo “Lugar Comum” e “Loucossões”.
Resumo
Este trabalho se propõe a fazer, a partir dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso Materialista, uma comparação entre o argumento, o quarto tratamento, o roteiro publicado e o registro em DVD do filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., observando alguns aspectos significantes, como os nomes dos personagens, e os deslizes metafóricos na elaboração do seu clímax, para daí tecer considerações a respeito do funcionamento da linguagem audiovisual e da forma de constituição de um sujeito que é interpelado na ilusão de onipotência, onisciência e onipresença, afetado, portanto, pelo discurso religioso, que esse tipo de materialidade demanda.
Palavras-chave: análise fílmica; filme Central do Brasil; análise de roteiro cinematográfico.
Abstract This paper aims to do, based on theoretical perspective of Materialist Discourse Analysis, a comparison of the argument, the fourth treatment, the published screenplay and the DVD movie of Central Station, by Walter Salles Jr.. It explore some aspects of the signifier, as the names of the characters, and the metaphorical substitution in the construction of its plot point, then to make some observations about the functioning of the audiovisual language and the constitution of a subject that is approached in the illusion of omnipotence, omniscience and omnipresence, affected by the religious discourse, that such materiality demand.
Key-words: film analysis; Central Station movie; screenplay analysis.
Proponho-me aqui a analisar como se configura, na materialidade fílmica, o que se convencionou, na história da dramaturgia ocidental, como clímax, ou plot point. Como os sujeitos do discurso elaboram e arranjam materialmente nos tratamentos de roteiro e no filme o funcionamento dessa categoria, para daí pensar os gestos de interpretação que materializam as relações ideológicas. Que recursos fílmicos são usados para materializar o auge catalisador da transformação de um personagem? E, nisso, como se reproduzem e se deslocam os sentidos postos para as condições materiais do homem na história em sua relação com outros?
Para a Análise de Discurso Materialista, diferente de Foucault, que considera o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como o núcleo de sua coerência, “a noção de autor já é uma função de sujeito, responsável pela organização do sentido e pela unidade do texto, produzindo o efeito de continuidade do sujeito”. (ORLANDI, 2006, 23). Concordo com LAGAZZI (ib., 85), que a autoria “está ligada ao trabalho com a equivocidade da linguagem” e que “o autor é o princípio de agrupamento do discurso”(id. ib., 91). Assim, “a autoria passa a ser um princípio necessário a todo discurso, estando na origem da textualidade”. (id. ib., 92).
O movimento dos sentidos mobilizados no roteiro se faz e refaz no processo de textualização fílmica. O a priori de sentidos que o roteiro parece construir na imbricação material, provoca reformulações necessárias e deslizes necessários, percurso próprio do funcionamento da linguagem em sua incompletude constitutiva, que nos faz perceber o acontecimento do significante nos sujeitos do discurso cinematográfico . Pensamos aqui o texto como espaço de possibilidades relacionais e o processo de textualização cinematográfica, mais do que
“um conjunto de idéias de um autor. (...) A forma do dizer, o significante, é a base sobre a qual os sentidos se produzem, em diferentes condições. E por isso a inspiração deve ser entendida como um processo relacional entre significantes, e entre significantes e significados, na história. A autoria se produz, portanto, no trabalho com o significante, delimitando textos” (LAGAZZI, 2006, 88)
Descrição de um Plot Point em Central do Brasil
Segundo ALTHUSSER (2003, 94),
“é no ‘Logos’, leia-se na ideologia, que aprendemos ‘o ser, o movimento e a vida’. (...) o efeito característico da ideologia – impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se tratam de ‘evidências’) as evidências como evidências”
Estar diante da imagem é estar, usando uma expressão desse autor, diante de um ritual de reconhecimento ideológico. A ideologia interroga, demanda, convoca os indivíduos em sujeitos. A materialidade da ideologia no audiovisual está em que nos reconhecemos, nos identificamos, nos emocionamos. E seu apelo universalizante mostra que esse ritual ultrapassa a evidência lingüística em sua força ideológica de evidenciação, ao mesmo tempo que este reconhecimento só é possível na interdependência da evidenciação lingüística. “Aqueles que estão dentro da ideologia se pensam, por definição, como fora dela” (ALTHUSSER, 2003, 97).
Para Ismail Xavier, entre os modos de constituição de sujeitos pela imagem, há os observadores embalados pela evidência empírica trazida por ela:
“(...)a imagem fotográfica (e cinematográfica) ganha autenticidade porque corresponde a um registro automático: ela se imprime na emulsão sensível por um processo objetivo sustentado na causalidade fotoquímica. Como resultado do encontro entre o olhar do sistema de lentes (a objetiva da câmara) e o ‘acontecimento’, fica depositada uma imagem deste que funciona como um documento. Quando se esquece a função do recorte, prevalecendo a fé na evidência da imagem isolada, temos um sujeito totalmente cativo ao processo de simulação...” (XAVIER, 2006, 368)
Ao assistir um filme brasileiro, sou chamado a me reconhecer e a reconhecer os outros nessa materialidade significante. Sou brasileiro, é meu país, é minha língua, eu conheço essas palavras, esses rostos, essas atitudes, esses rituais. O estranho é como outros povos também se reconheçam. Como o filme é reconhecido por sujeitos na América do Norte e na Europa que não conhecem nossos rituais e ainda assim se identificam com eles? Como isso traz o não pensado para o pensado, o não vivido para o vivido? Que vínculo é esse que faz com que tais significantes constituam o sentido nesses sujeitos, constituindo esses sujeitos nessa cadeia?
Sei quem são os atores, sei que este é um espaço fictício e sei que é um espaço de se dizer, de se pensar, de se materializar o que dizem e o que pensam, de se propor um sentido outro pra os sentidos estabelecidos nas condições de produção e reprodução da vida social. É preciso mostrar e ver a realidade por formas metafóricas, funcionamentos e inserções de outros planos que não são a continuidade da história, mas que dizem, que remetem o dizer, no deslizamento significante aos sentidos que constituirão o sujeito. O real é insuportável. Metaforizemo-lo então, em estruturas simbólicas, em discursos que remetem a outros e a outras maneiras de fazer sentido. Deslizes e transferências de sentido em outras formas materiais que parecem dizer o que dizem remetendo esse dizer a outras situações, apreendendo o sujeito em sua incompletude. É possível se humanizar? Que outros sentidos são possíveis para os sentidos estabelecidos e reproduzidos no seio das relações sociais? Como ganham corpo esses sentidos? Qual é a forma histórica de consciência que o cinema constitui, se, como afirma HENRY(1994, 32), “sem linguagem não há consciência”?
Abaixo o trecho do corpus a ser analisado:
ARGUMENTO FINAL (BERNSTEIN & CARNEIRO, 2008, 19-20).
“[...] Fernanda arrasta Jeová no meio da confusão da rua. Insistentemente, o menino quer saber o que vão fazer agora, o que a deixa transtornada. Grita que agora não sabe mais o que fazer, que ele foi uma desgraça que aconteceu na sua vida, que ela não o suporta mais. Ao se virar, vê ele correndo já bem adiante na rua. Corre atrás dele. Dá tudo de si na perseguição, mas ele, ágil, se distancia cada vez mais até que ela o perde de vista. Cambaleando, tonta de cansaço e de fome, ela continua procurando por ele naquele caos. Passa um bom tempo. No fliperama, nas barraquinhas de tiro ao alvo, de cachorro quente, fisionomias parecidas, mas nada de Jeová. Ela já está quase sem forças, quando o enxerga entrando com uma porção de crianças na tenda do espetáculo circense "Telma, a Mulher Gorila".
No momento em que ela penetra na tenda, as luzes se apagam e se inicia o espetáculo. A voz do locutor começa o relato da história de uma mulher doce e graciosa que, quando irritada, se transforma em gorila e tem que fugir de casa para não machucar as pessoas que ama. Fernanda, fora de si, grita por Jeová, competindo com a voz do locutor. Diz que gosta muito dele, que pede desculpas, que não vai mais lhe fazer mal nenhum. Quase no escuro, passa em revista às crianças que se assustam com ela, imaginando que Fernanda possa fazer parte do espetáculo.
Num truque primitivo, atrás do palco, a figura de uma mulher em transe começa a se metamorfosear em gorila. A narração chega ao auge. Fernanda vê tudo rodar e cai dura no chão. Jeová surge e se agacha junto dela.
Fernanda não reconhece o quarto onde acorda. César e Jeová estão sentados em duas cadeiras em frente à cama. César conta que Jeová veio chamar por ele, pedindo que os ajudasse. Ele a carregou até seu hotel. Ele conta que precisa partir, vai fechar a conta do quarto, mas que antes gostaria de convidá-los para comer alguma coisa no restaurante do hotel..[...]”
4º. Tratamento (BERNSTEIN & CARNEIRO, 2009, 71-74)
94. EXT. RUA - NOITE
Dora arrasta Jeová no meio da confusão da rua de novo. Está histérica e o menino está chorando.
DORA
Eu não sei o que eu fiz a Deus pra merecer
isso. Você é um castigo na minha vida, garoto!
JEOVÁ
Eu tô com fome...
DORA
Você acha que eu também não tô?! Não tem
mais comida, não tem mais dinheiro, se é o que
você quer saber! Acabou tudo! Agora a gente
vai morrer de fome! Satisfeito?
JEOVÁ
O quê que a gente vai fazer?
DORA
(começa a berrar)
Eu não sei, eu não sei! Eu tenho que continuar
responsável por você, que outro jeito! Teu pai e
tua mãe te puseram no mundo, não deviam ter
posto, agora eu, a Fernandona aqui, que cuide
de você.
Ao se virar, Dora vê Jeová correndo já um pouco adiante na rua.
DORA
Jeová! Espera!
Ela corre atrás dele. Dá tudo de si na perseguição, mas ele, ágil, se distancia cada vez mais até que ela o perde de vista. Cambaleando, tonta de cansaço e de fome, ela continua procurando por ele naquele caos. Pára. Está na pracinha da cidade. No fliperama, nas barraquinhas de tiro ao alvo, de cachorro quente, fisionomias parecidas, mas nada de Jeová. Ela já está quase desistindo, quando o enxerga entrando com uma porção de crianças na tenda do espetáculo circense "Telma, a Mulher Gorila". Dora corre até lá.
95. INT. TENDA DA MULHER GORILA - NOITE
No momento em que Dora penetra na tenda lotada de crianças, as luzes se apagam e inicia-se o espetáculo. A VOZ do locutor toma o ambiente, em meio ao jogo de luzes e espelhos e à MÚSICA de terror barato. Ecoa um estrondoso rufar de tambores. Num espaço reservado, atrás de grades, surge uma mulher jovem num maiô cavado, que dança ao som de um pop romântico.
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Telma. Bela Telma. Doce Telma. Telma era
uma mulher comum, como a sua mãe, a sua
irmã, a sua tia. Até o dia em que sonhou com
um enorme gorila invadindo seu quarto. Nove
meses depois do sonho, ela deu a luz a uma
criança.
A música agora é suave, melodiosa. Dora procura por Jeová entre as crianças com a ajuda dos FLASHES das luzes do show.
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Ricardinho nasceu normal, um garoto saudável
e risonho. Mas uma noite, quando Telma
levava Ricardinho para passear na pracinha
surgiram bandidos, facínoras, que ameaçavam
matar seu amado filho se Telma não lhes
desse todo o seu dinheiro.
A música subitamente se torna dramática. Cada vez mais tonta com a confusão, Dora continua passando em revista às crianças, que se assustam com sua presença, pensando que talvez possa fazer parte do espetáculo. Algumas soltam pequenos gritos.
DORA
(competindo com a voz do locutor)
Jeová! Jeová! É a Dora ! Eu estou aqui! Onde
você está?!
Telma continua sua dança sensual no palco.
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Eu não vi, não posso dizer que é verdade, mas,
segundo contam por aí pessoas que estavam
na pracinha, vendo seu filho ameaçado de
morte, Telma, a doce Telma, a suave Telma,
transformou-se num imenso gorila, uma fera
sanguinária!
Tambores rufam no sistema de som
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Ela atacou, barbarizou, E-S-T-R-A-Ç-A-L-H-OU
os bandidos.
Dora, atordoada com as luzes e o barulho, tenta enxergar os rostos dos
espectadores.
DORA
Jeová! Cadê você, Jeová?
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Reza a lenda que, desde então, quando irritada
ou maltratada, Telma, a encantadora Telma,
imediatamente se transforma. Se transforma
naquela fera sanguinária machucando quem
quer que esteja à sua volta. Nem mesmo os
seus familiares estão à salvo da sua fúria!
Cada vez mais tonta, Dora continua sua busca.
DORA
(gritando)
Jeová! Jeová ! Não foge não! Eu não quero te
fazer mal! Juro que não faço mais isso! Não
vou brigar com você, prometo!
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Mas, antes que pudesse fazer algum mal a
seus entes mais queridos, Telma largou sua
família. Nunca mais pôde rever Ricardinho! Sua
sorte foi ter sido acolhida por nós, desse
grande circo! Agora não há razões para Telma
se irritar conosco, ou com os amáveis
espectadores, não é mesmo Telma?
A música, que tinha voltado a ser melodiosa, subitamente pára e começa a se intercalar com a música dramática. As luzes piscam mais rápido. No palco, a mulher dá sinais de nervosismo e investe contra as grades. Se contorce violentamente numa convulsão. Dora, cambaleante, se apóia nas crianças que vão saindo de perto dela.
DORA
Jeová! Jeová, volta aqui! Eu não queria dizer
aquilo!
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Mas o que está acontecendo! Senhores, isto
não estava previsto no espetáculo!
(fingindo tensão)
Calma Telma, o público é seu amigo!..
As luzes e a música chegam ao clímax. Num truque primitivo, a mulher começa a se metamorfosear em gorila e URRAR.
DORA
Jeová!
Telma, agora cheia de pêlos pelo corpo, urra cada vez mais forte, e começa a
arrancar as grades. Alguns espectadores começam a fugir da tenda.
LOCUTOR (OFF) (cont.)
Calma Telma, o público... Telma... Telma...
Socorro!
DORA
Jeová!
Tudo é absolutamente frenético: rostos surgem e somem com as luzes que piscam mais rápido que nunca, o barulho é ensurdecedor. Dora vê tudo rodar e cai dura no chão. Jeová surge e se agacha junto dela.
96. EXT. PRAÇA DE BOM JESUS - AMANHECER
De manhã bem cedinho, Dora acorda deitada com a cabeça no colo de Jeová.
Os dois estão num banco da praça principal de Bom Jesus.
Roteiro publicado (BERNSTEIN & CARNEIRO, 1998, 75-78)
89. RUA –EXT. – ENTARDECER
Dora arrasta Josué no meio da confusão da rua de novo. Eles avançam em direção à saída da cidade.
DORA
Não consegui a merda de um caminhão que me tirasse do meio desse diabo de romaria.
JOSUÉ
Pra onde a gente vamos agora?
DORA
Vamos a pé. Tentar uma carona na estrada.
JOSUÉ
A pé?
DORA
É, a pé! Meu Deus, meu Deus. Eu não sei o que eu fiz a Deus pra merecer isso, eu não sei. Você é um castigo na minha vida, garoto!
JOSUÉ
Eu tô com fome...
DORA
E eu? Eu não tenho fome? Eu não tenho fome, só você?! Não tem
comida, não tem mais dinheiro, não tem
mais comida. Acabou! Se é o que
você quer saber, acabou!
JOSUÉ
O quê que a gente vamos fazer agora?
DORA
(começa a berrar)
Sei lá, sei lá!
Teu pai e
tua mãe te puseram no mundo, não deviam ter
posto! Porque agora eu aqui, que te agüente, desgraça. Você é uma desgraça. Você é uma desgraça.
Ao se virar, Dora vê Josué correndo de volta para a concentração da romaria.
DORA
Puta que te pariu! Puta que pariu! Josué! Onde é qu’cê vai? Volta aqui, menino! Josué! Volta aqui, moleque! Josué! Josué!
Ela corre atrás dele. Dá tudo de si na perseguição, mas ele, ágil, se distancia cada vez mais até que ela o perde de vista. Cambaleando, tonta de cansaço e de fome, ela continua procurando por ele naquele caos. Centena de pessoas entoam cantos, ajoelham-se, levantam e depositam oferendas no pé da estátua da Virgem Maria no meio da praça da cidade.
Dora tenta abrir caminho entre o povo.
DORA
Josué! Josué!
Dora consegue entrever o menino de costas escapulindo entre a multidão.
DORA
Onde é que você se meteu? Josué, Josué, volta aqui!
Ninguém parece escutá-la.
MULHER (rezando)
Obrigado, obrigado, Jesus, eu to te pedindo, te orando, com todo o meu coração. Jesus, com toda a minha alma, Jesus. Abençoa o meu povo. Abençoa, menino Jesus, os meu romeiro.
HOMEM (rezando)
Me perdoa, Senhor, que sou um pecador. Pelo sangue de Cristo, Senhor. Olha minhas dificuldades... o meu sangue na veia... no meu corpo, Nosso Senhor Jesus Cristo... Protege minha mãe... abençoe minha família, me protege pelo sangue de Cristo... Queima Senhor... queima Senhor... Pra que tanto sacrifício... pra que tanta dor?
POVO
Viva a Virgem Santíssima!
90. SACRISTIA/SALA DOS MILAGRES –INT. –NOITE
Rezadeiras, romeiros e penitentes se comprimem entre o corredor da sacristia que leva até a sala dos milagres, coração e objetivo final da romaria.
Muitos cantam ou rezam baixinho. A atmosfera é de respeito e concentração. Nos cantos da sala, homens e mulheres rezam o terço ajoelhados e virados para a parede. Outros acendem vela e em seguida beijam o chão.
Dora mais uma vez tenta abrir caminho em meio ao povo para tentar chegar mais perto do menino que ela acha ter visto entrando na sacristia.
As pessoas à sua volta olham para Dora com indignação. Um homem leva o dedo à boca indicando para que ela faça silêncio. Ela acaba tendo que acompanhar o fluxo de gente.
Dora consegue penetrar na sala dos milagres. As paredes estão completamente cobertas de fotos e lembranças dos romeiros cujas graças foram alcançadas. Milhares de rostos em fotinhas 3x4, assim como bonecas de pano, brinquedos, fitinhas, mechas de cabelos, relógios e caixas de remédios se sobrepõem formando uma gigantesca colcha de retalhos.
Dora procura Josué em meio ao povo que se espreme naquele cubículo. A visão daqueles milhares de rostos nas fotos na parede parece confundi-la mais ainda. Ela vê tudo rodar.
Todos olham para Dora.
ROMEIRA
Silêncio!
Dora cai dura no chão. Josué surge e se agacha junto dela.
91. PRAÇA DE BOM JESUS – EXT. – AMANHECER
De manhã bem cedinho, Dora acorda deitada com a cabeça no colo de Josué. Os dois estão no chão da praça principal de Bom Jesus.
Decupagem do cap. 10 do filme em DVD,
time code inicial 1:11:23; time code final 1:16:11
Cap. 10. Rua – ext – noite
PG Romeiros diante da capela todos com velas, cantando um louvor a Deus, som em BG durante toda a cena abaixo.
Travelling: por entre casas simples e paus-de-arara, vemos Dora seguida por Josué na contramão dos romeiros que passam carregando velas. Eles avançam em direção contrária à procissão.
DORA
Não consegui a merda de um caminhão que me tirasse do meio desse diabo de romaria.
JOSUÉ
Pra onde a gente vamos agora?
DORA
Vamos a pé. Tentar uma carona na estrada.
JOSUÉ
A pé?
DORA
É, a pé! Meu Deus, meu Deus. Eu não sei o que eu fiz a Deus pra merecer isso, eu não sei.
PG Dora e Josué param, ela se vira para ele:
DORA
Você é um castigo na minha vida, garoto!
PM de JOSUÉ
Eu tô com fome...
PM de DORA
E eu? Eu não tenho fome? Eu não tenho fome, só você?! Não tem
comida, não tem mais dinheiro, não tem
mais comida. Acabou! Se é o que
você quer saber, acabou!
PM de JOSUÉ
O quê que a gente vamos fazer agora?
PM de DORA
Sei lá, sei lá!
Teu pai e
tua mãe te puseram no mundo, não deviam ter
posto! Porque agora eu aqui, que te agüente, desgraça. Você é uma desgraça. Você é uma desgraça, puta que pariu!
PM de JOSUÉ olhando (enfurecido? Decepcionado?) pra Dora, com olhos marejados e sobrancelhas franzidas
PG
Dora dá as costas pra Josué. Ele sai correndo em direção oposta. Ao se virar, Dora vê Josué correndo de volta para a concentração da romaria.
PG de DORA
Puta que pariu!
(Travelling de Dora correndo atrás de Josué e gritando)Josué! Onde é qu’cê vai? Volta aqui, menino! Josué!
Ela corre atrás dele gritando por ele. PAM levemente pra cima. Um sino dá um toque. PG de Josué se misturando na romaria em frente à capela.
Voz over de Dora
Volta aqui, moleque! Josué! Josué!
Centenas de pessoas, com velas nas mãos, entoando o louvor, ajoelham-se. PA lateral de Josué correndo velozmente entre a multidão. Ouvimos a voz de Dora gritando.
Voz over de Dora
Josué! Josué!
PG de Dora fazendo o mesmo percurso de Josué entre os romeiros ajoelhados. Corta para PA lateral de Josué correndo. PA lateral de Dora gritando. PG Josué se confundindo no meio da multidão. GPG romeiros se levantam. PA lateral de Dora ainda gritando por Josué. PG de Josué no meio do labirinto humano. PM de Dora tentando abrir caminho entre o povo.
DORA
Meu Deus! Meu Deus! Josué! Josué!
Câmera nervosa seguindo Dora em PM abrindo caminho no meio da multidão, gritando, indo em direção à capela.
Dora consegue entrever o menino de costas escapulindo entre a multidão.
DORA
Onde é que você se meteu? Josué, Josué, volta aqui!
Ninguém parece escutá-la. PG de várias cabeças paradas, com velas na mão e de Dora em movimento.
Plano-detalhe/PAM vertical de braços de mulher diante de uma imagem de N. Sra. Auxiliadora?
MULHER (voz over rezando)
Obrigado! Te agradeço de coração, Senhor! obrigado, Jesus, obrigado, meu Pai.
PM de duas mulheres com velas e a capela ao fundo (?).
MULHER
Por mim que estou aqui, Senhor, te pedindo, te orando, com todo o meu coração.. Jesus, com toda a minha alma, Jesus.
PG de várias cabeças paradas, com velas na mão e de Dora em movimento.
MULHER voz over
Eu sou uma franciscana de todo o meu coração.
INSERT pessoas diante da imagem da virgem. Mulher caminhando de joelhos.
MULHER voz over
Abençoa o meu povo. Abençoa, menino Jesus, os meu romeiro.
PLONGÉ DIAGONAL GERAL DA ENTRADA de Josué NA TENDA DOS MILAGRES. AO LADO A PLACA “SERVIMOS REFEIÇÕES”
INSERT homem equilibrando pedra na cabeça ajoelhado rezando.
CLOSE SENHOR de uns 50 anos ora como um evangélico
SENHOR (rezando)
Me perdoa, Senhor, que sou um pecador. Pelo sangue de Cristo, Senhor.
PLONGÉ DIAGONAL GERAL DA ENTRADA de Dora NA SALA DOS MILAGRES. AO LADO A PLACA “SERVIMOS REFEIÇÕES”
SENHOR voz off
Olha minhas dificuldades... o meu sangue na veia... no meu corpo, Nosso Senhor Jesus Cristo...
SALA DOS MILAGRES. INT. NOITE.
PAM na sala dos milagres. As paredes estão completamente cobertas de fotos e lembranças dos romeiros cujas graças foram alcançadas. Milhares de rostos em fotinhas 3x4, assim como bonecas de pano, brinquedos, fitinhas, mechas de cabelos, relógios e caixas de remédios se sobrepõem formando uma gigantesca colcha de retalhos. Dora entra. CLOSE em Dora.
SENHOR voz off
Protege minha mãe... abençoe minha família, me protege pelo sangue de Cristo... Queima Senhor... queima Senhor... Pra que tanto sacrifício... pra que tanta dor?
SUBJETIVA DE DORA: pessoas cantam ou rezam baixinho. A atmosfera é de respeito e concentração. Nos cantos da sala, homens e mulheres rezam o terço ajoelhados e virados para a parede. Uma mulher atravessa a Sala dos Milagres com uma vela acesa. Outros acendem vela, outros se benzem.
PAM suave Dora olhando assustada os ex-votos. Os sons de romeiros rezando e violoncelo se sobrepõem num eco indiscernível.
SUBJETIVA de Dora: as paredes cobertas de fotos e lembranças dos romeiros cujas graças foram alcançadas. Romeiros tocam nos quadros e fotos e se benzem.
PAM suave em close de Dora procurando Josué.
PAM suave PM duas romeiras rezando diante de velas.
Volta PAM suave em close de Dora que olha para um lado e outro, sugerindo a procura por Josué.
Travelling suave. Dora de costas abrindo uma cortina que separa um espaço de outro. Assustada e à procura do menino.
Uma romeira se benze em PM. Ao fundo Dora se segurando na parede. PAM suave. Dora vem tonta em direção ao nosso olhar abrindo e fechando os olhos.
SUBJETIVA de Dora fora de foco e em foco nas luzes de velas e pessoas rezando na sala dos milagres. Leve movimento simulando tontura de Dora.
CORTA PARA
ENTRADA DA CAPELA. EXT. NOITE
Mesmo Senhor, de uns 50 anos, orando fora da Capela.
SENHOR
queima, Senhor! queima, Senhor! E honra, Senhor, das trevas, Senhor...
CORTA PARA
SALA DOS MILAGRES. INT. NOITE.
Dora atravessa o quadro tonta e suada.
Travelling SUBJETIVA DE DORA de costas atravessando a sala dos milagres entre uma cortina de retratos 3x4. O som de violoncelo começa a se sobrepor às inúmeras vozes.
SENHOR, em off
Pra quê tanto sacrifício, Senhor?
Travelling em CLOSE de Dora entrando noutro ambiente na sala dos milagres, atravessando de frente a cortina de retratos, tonta, suada e a ponto de desmaiar.
APRESENTADOR em off
Vamo afastar a escuridão! Viva a festa das candeias!
INSERT de PG em que um homem acendendo um fogo de artifício que gira espalhando faíscas na escuridão enquanto os romeiros assistem com suas velas e lamparinas.
PAM PM em Dora rodando de um lado para outro e SUBJETIVA DE DORA em que tudo simular rodopio dentro da sala dos milagres.
CLOSE DE
DORA, desfalecendo
Josué!
PM de ROMEIRA levando o dedo a boca: gesto pedindo silêncio!
CLOSE DE DORA. A partir daqui INTERCUT (alternam-se INTERIOR e EXTERIOR da Sala dos Milagres). Entre SUBJETIVA de Dora e P.O CLOSE do fogo de artifício girando com romeiros ao fundo. SUBJETIVA DE DORA em chicote 360º se acelerando.
CLOSE EM DORA CAINDO.
PLONGÉ PG em Dora caindo no chão INTERCUT com explosão do fogo de artifício com milhares de fagulhas em torno de uma foto de pintura de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro com o menino Jesus, seguido de aplausos e comemorações dos romeiros.
CORTA PARA
SALA DOS MILAGRES. INT. NOITE
PG contra plongé (a altura do chão). Dora caída entre uma romeira em pé e outra sentada, ao fundo mais duas rezando de costas. Josué aparece, vê Dora caída e se agacha para ajudá-la.
INSERT CLOSE de fogo queimando e gradualmente revelando a foto de pintura de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro com o menino Jesus.
FADE
PRAÇA DE BOM JESUS. EXT. AMANHECER
PG entre uma árvore e muros das casas, de lado, Dora deitada com a cabeça no colo de Josué, no chão da praça do vilarejo. A capela ao fundo. Bodes atravessam a praça.
Travelling PG de frente Josué sentado e Dora deitada com a cabeça no colo de Josué, que faz cafuné nela. Dora acorda e olha para Josué com leve sorriso.
Sem poder tudo dizer, o que primeiro me saltou aos olhos e aos ouvidos em “Central do Brasil”, foi a relação significante entre os nomes dos personagens, que me parece fundamental no funcionamento do filme como metáfora do percurso de um povo, na sua trajetória de busca por uma identidade. Os personagens centrais são nomeados com nomes do imaginário cristão. Nomes como Dora, Josué, Jesus, Ana, Isaías e Moisés não estão vazios de uma memória de sentidos no imaginário do povo brasileiro, e dos espectadores do filme. Cada nome tem uma história, remete a um outro nome e, nesse re-nomear, herdamos uma tradição: a invocação para que o sujeito que o ocupou, se materialize novamente. Essa história não é encoberta, ressoa. Esse eco também constitui o sujeito em seus processos de identificação e interpretação. Pelo seu nome, o sujeito narra o outro cujo mesmo significante reaparece ali. O que se passou, constrói um mecanismo de retorno.
Comparando o início da cena, entre a formulação verbal e a formulação visual temos:
4º. Tratamento de Central do Brasil:
94. EXT. RUA – NOITE
Dora arrasta Jeová no meio da confusão da rua de novo. Está histérica e o menino está chorando.
ROTEIRO PUBLICADO de Central do Brasil
89. RUA –EXT. – ENTARDECER
Dora arrasta Josué no meio da confusão da rua de novo. Eles avançam em direção à saída da cidade.
Filme em DVD de Central do Brasil
Cap. 10, time code 1:11:25. Rua – ext – noite
PG Romeiros diante da capela todos com velas, cantando um louvor a Deus e Nossa Senhora, que será a trilha em BG durante o resto da seqüência.
Travelling: por entre casas simples e paus-de-arara, vemos Dora seguida por Josué na contramão dos romeiros que passam carregando velas. Eles avançam em direção contrária à procissão.
Jeová no 4º. Tratamento passa a ser Josué. Esses significantes se inscrevem na formação discursiva religiosa judaico-cristã. Todo cristão ou todos os que foram criados sob a égide do Cristianismo, facilmente relacionam um significante a outros sujeitos, e a outros significantes. Dora nos remete à redução do nome Auxiliadora. Numa intrincada cadeia de significantes e significações, o filme constrói diálogos que tentam exorcizar o funcionamento histórico que os nomes como Jeová e Jesus carregam, trazendo outro sentido, construindo outro lugar de significação. Se Jesus é, na História, o nome do filho de Deus, o salvador do mundo, reverenciado por todos os cristãos e respeitados por todos aqueles que conhecem minimamente sua história, numa das primeiras falas do filme, Ana, a esposa desse Jesus, dispara, ao ditar uma carta: “-Jesus, você foi a pior coisa que me aconteceu. Eu falei que você não vale nada, mas ainda assim o menino pôs na idéia que quer te conhecer...” (Central do Brasil, 1998, cap. 1, time code 02’02”). O destinatário e endereço: Jesus de Paiva, Sítio Volta da Pedra, Bom Jesus do Norte, Pernambuco. Por que nomear assim os lugares e os personagens? Que trabalho de interpretação se processa aí? Pensando do ponto de vista discursivo, nessa re-formulação há o deslize de sentidos estabilizados da cristandade. Ao povo brasileiro crédulo e católico, a volta da pedra, a pedrada, o retorno: Jesus, a melhor coisa que teria acontecido; Bom Jesus do Norte x Jesus, a pior coisa que aconteceu; o mau Jesus do Norte (Pernambuco: Nordeste). Se a idéia do cinema é refletir a realidade, com a injunção de um ponto de vista com o qual o espectador obrigatoriamente deverá ver o que lhe é seletivamente mostrado, o funcionamento de Central do Brasil, oscila em reafirmar a beleza da religiosidade e negar seu lugar de conforto, de esperança, de transformação, de redenção e de aceitação do outro.
Se, do ponto de vista psicanalítico – o discurso que ressoa no filme o tempo todo em contraponto com o discurso religioso -, é do estatuto do significante ser materialidade de uma ausência, o pai no filme será nomeado, buscado, desejado, imaginado, simbolizado, mas jamais encontrado. Jesus, o nome do pai, e a procura por ele, é o elo que se constrói entre Josué e Dora, que enreda os dois pelo Brasil descentrado, mas esse elo estará sempre ausente. E quem ocuparia esse lugar? Essa busca dos dois personagens é o que provoca o desenrolar do enredo, aquilo que causa as tomadas de posições. Essa ausência presente move o filme. Nas palavras de FUKS (1998, 2),
“encontrar o pai, ser reconhecido por ele e desfrutar dos valores dignificantes conferidos por uma família, um sexo e um ofício pleno, para o menino, de significação social. Este desejo e este ideal – que podemos chamar de utópico, no sentido conceitualmente mais rico e mais denso que lhe conferimos hoje em dia – vai ser o que produz ‘enganche’ no indestruído (e por definição indestrutível) do desejo inconsciente de Dora.”
Dora, como personagem, é construída como capturada pelo significante do desejo do outro, Jeová que, como vimos, nas reformulações do roteiro, passa a ser Josué. O ponto de vista discursivo que nos interessa aí é como se coloca o sujeito do discurso para dar lugar a esse processo de produção de sentidos e como ressoa nisso a ideologia e o inconsciente, como é possível que a interpretação construída nessas textualizações se mova nessa direção e de que modo as condições de produção são inscritas nesse processo, para que se diga, e no caso da especificidade dessa materialidade simbólica, se mostre desse lugar e não de outro.
“Onde falha o pai real, há apelo ao pai simbólico, e onde falha a função do pai simbólico – de garantir a castração – surge o pai imaginário”, diz o discurso da psicanálise lacaniana. Se fôssemos nos ater numa análise de conteúdo, presos na estrutura narrativa, diríamos que para Dora, lidar com o desejo de Josué é lidar com seu próprio desejo. Ela, o tempo todo, sabe o que Josué vai encontrar. O seu próprio pai, ela substitui pelo pai de Josué e lá encontra o mesmo, o indistinto. O enigma dela se repete no enigma de Josué, de forma que o desejo de Josué fecunda o de Dora. Entretanto, para além de nos referirmos à estrutura interna dos textos, queremos pensar como está sendo mostrado o que vemos e de que lugar se diz o que ouvimos, como poderia ser mostrado se não fosse mostrado assim, quem mostra, quem vê, quem é representado mostrando e quem é representado vendo.
Nesse texto, Dora interpreta o desejo de Josué como apenas o desejo da mãe dele. E ela inicialmente interdita os dois, ao dizer que vai enviar a carta, sem intenção de fazê-lo. Em seguida, ela é enredada por esse desejo, deslocando assim toda a sua existência. Ora ela lida com o ‘pai humilhado’, ora com a ausência dolorosa desse pai. Tal qual Jesus Nazareno e seu pai, esse Jesus também é carpinteiro. E é isso que o personagem Josué faz questão de ressaltar, no desenrolar do filme, a respeito da função e caracterização desse pai. Ele, como seus dois irmãos no final do filme, repete e volta a repetir, como se recontasse um mito, uma lenda:
“JOSUÉ
meu pai trabalha demais. Ele é carpinteiro. Ele trabalha com madeira. Sabe fazer mesa, cadeira, porta, pião, casa, tudo sozinho.” (Central do Brasil, DVD,1998, cap. 4, time code 26’)
Josué, como personagem, contrapõe o tempo todo o pai que lhe é oferecido como real, com o pai que ele leva no imaginário. Ao alcoólatra, ele contrapõe o trabalhador; ao espancador, ele contrapõe o carinhoso, o provedor. O que isso nos indica do funcionamento da linguagem no audiovisual? Neste processo de textualização, o sujeito se constitui em diversas posições de sentido, e se multiplica em diversos pontos de vista para significar de diferentes maneiras, mas, ao mesmo tempo, nessa injunção a significar e a interpretar, e envolver o interlocutor nesse enredo, o funcionamento dos sentidos nos constitui nessa demanda unificadora: o lugar de onde se posiciona é esse lugar que tudo vê, tudo percebe, tudo engloba, muda o ponto de vista através da transferência de perspectiva para os personagens e constrói assim o olhar totalizador. Como nos diz Xavier,
Na ficção cinematográfica, junto com a câmera, estou em toda parte e em nenhum lugar; em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem preencher espaço, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo (XAVIER, 2006, 370)
Noutro momento, cita Baudry, e descreve o funcionamento de certo tipo de cinema como esse olhar sem corpo, que demanda do espectador se colocar no lugar do aparato, incorporando ilusoriamente seus poderes, simulando uma onipotência imaginária:
Analisar sua incidência no espectador que vivencia o poder de clarividência, a percepção total. Na sala escura, identificado com o olhar da câmera, eu me represento como sujeito dessa percepção total, capaz de doar sentido às coisas, sobrevoar as aparências, fazer a síntese do mundo. (...)a realização maior do cinema seria então esse efeito-sujeito: a simulação de uma consciência transcendente que descortina o mundo e se vê no centro das coisas, ao mesmo tempo que radicalmente separada delas, a observar o mundo como puro olhar. (XAVIER, 2006, 377)
Desse ponto de vista, é possível dizer que o sujeito do discurso no cinema, para dar conta da incompletude constitutiva, é demandado pela ilusão de onipontência, onisciência, onipresença, atributos do divino no discurso religioso.
No hebraico, Josué e Jesus são o mesmo nome. Esse significante aparece de duas formas na Bíblia: Yehoshua e sua forma abreviada Yeshua. Yehoshua foi adaptado para nossa língua como Josué, nome do auxiliar do profeta Moisés que, após a morte deste, tornou-se líder dos israelitas, conduzindo-os na conquista da “terra prometida”. Nos livros de Êxodo, Números, Deuteronômio, Josué e Juízes, ele é chamado de Yehoshua (traduzido como Josué), em Neemias, cap 8, vers. 17 (Bíblia Sagrada, 2006) é chamado de Yeshua (Jesus). Esse também é o nome do sumo sacerdote na época de Zorobabel, que ora aparece como Josué (Yehoshua), ora como Jesus (Yeshua). Nos livros dos profetas Ageu e Zacarias, esse mesmo sumo sacerdote é chamado de Yehoshua(Ageu, cap. 1, vers. 1; e Zacarias, cap. 3, vers. 1, Bíblia Sagrada, 2006), e nos livros de Esdras e Neemias, Yeshua (Esdras, cap. 3, vers. 2; e cap. 5, vers. 2; e Neemias cap.7, vers.7, Bíblia Sagrada, 2006).
Tanto o nome Yehoshua quanto o nome Yeshua foram adaptados para o grego como Iesus. Na tradução do Antigo Testamento em grego, chamada Septuaginta, feita no século III A.C., o nome Yehoshua aparece como Iesus, e o nome Yeshua também aparece como Iesus. Daí é que veio a forma Jesus, que é usada nas traduções da Bíblia para o Português.
Yehoshua ou Yeshua significa YHVH salva ou “O Auto-Existente salva” (Javé ou Jeová, em Êxodos, cap 3, vers. 14, “Eu Sou o Que Sou”). Nesse significante, O Nome de Deus compõe, se mistura, está no meio das formulações do nome do pai e do filho, Jesus, Jeová ou Josué. É a origem deles, é o que os une. O pai é o filho; o filho, o pai. A busca do outro é a busca de si. Aqui o incertus, como em Édipo, desliza para o espelho. Nós assistimos a tudo isso e jamais, como eles, saberemos como é esse pai. O gozo de Josué, e o gozo do espectador pela satisfação que esse encontro causaria, jamais se realizará.
De onde eu vim? Para onde eu vou? Essas perguntas que enredam o sujeito numa narrativa de si, para si, enlaçam Dora e Josué, de forma que o outro aí é a correspondência necessária, no curto espaço de tempo desse encontro, em que o mistério que se quer resolver, apenas desliza para outro lugar, clareando algumas demandas e encobrindo tantas outras. Para a solução da cena inaugural do desejo, para a exclusão do pai, que contamina (ou que fecunda) o resto da vida, a solução foi o encontro com o semelhante, com o fraterno. Esse pai não tem moradia, nem paradeiro. Desliza sempre. A partir de agora, o encontro possível é com os outros filhos dele. Ele é o mistério que permanece. E sua única substância é o outro igual, o irmão. Assim, não se vê materializada a causa. Os filhos, o efeito desse pai, se presentificam. Já que a causa se mostra inapreensível, inencontrável, irredutível, resta o efeito.
Se na interpretação lacaniana, Deus se apresenta como essencialmente escondido, é possível pensar que o filme, dissimulando sua busca pelo pai, procura o Pai, escondendo o pai, constrói-se significando, ecoando esse Outro, no outro. Lida com o Real, simbolizando-o, ficcionando-o, portanto, dissimulando-o.
Outro aspecto que salta, comparando os deslizes de sentido nas diferentes fases da textualização fílmica, é a transformação da formulação “tenda da mulher gorila” para “sala dos milagres”. Ao elaborar a situação da busca por Josué num lugar ou noutro, observamos que a injunção aqui é que o sentido precisa corporificar a transformação da personagem Dora, vivida por Fernanda Montenegro. Podemos supor que externar o que é interno a esta personagem, comanda essas reformulações. Mostrar uma bela mulher se transformar em gorila ou fazer Dora penetrar no interior mais sagrado da forte religiosidade católica nordestina para, lá dentro, desmaiar, ao mesmo tempo em que a montagem alterna com o fogo de artifício explodindo, terminando numa pintura sacra de Nossa Senhora com o menino Jesus, nos faz perceber que o funcionamento dos sentidos no audiovisual aqui se dá nesse deslize de, para se fazer ver a situação dramática de uma personagem, é preciso reformulá-la noutra imagem, materialidade significante distinta, para que o interlocutor seja conduzido a inferir a relação entre um enunciado e outro, produzindo o deslize e a conexão interpretativa.
“A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações se engendram menos por força de isolamentos (...), mais por força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade invejável. É sabido que a combinação de imagens cria significados não presentes em cada uma isoladamente.” (XAVIER, 2006, 368)
Mostrar uma coisa e outra. Conduzir a interpretação para a possibilidade dessa transformação. E textualizar isso de um jeito e de outro produz efeitos diferentes. Como não controlar os deslizes de sentidos para a brutalidade que mostrar alternadamente Dora e a mulher-gorila provocaria? E quais podem ser os efeitos de sentido se na outra formulação, a que acaba por se impor e vai a público, se alterna entre Dora e a religiosidade, a alegria, a pureza da fé, a catarse coletiva, fogos explodindo, finalizando com a singeleza da memória discursiva de uma santa mulher e seu menino-Deus, Jesus? Que efeitos esse contorno material significante produz? Ao produzir a transformação da brutalidade de Dora em doçura é preciso produzir a transformação do interlocutor e de sua brutalidade inferida. Mostrar, como a montagem faz na alternância entre a câmera subjetiva e o “olhar sem corpo”, o ponto de vista de Dora e alternar entre um olhar que a acompanha e um olhar produzido como seu olhar é chamar o observador a se colocar no lugar de Dora. A assumir diferentes pontos de vista nesse jogo inebriante.
A organização complexa do texto visual e sonoro se dá por uma outra lógica, sintaxe múltipla, concomitante, que precisa se comprimir, se limitar, constringir, linearizar, enfim, na escrita do roteiro ou na fala, durante o processo de realização cinematográfica, para, daí, se extravasar nas suas variadas formas de materialização de sentido. O espaço da formulação: da sintaxe múltipla, ir para o verbal para, daí, sair dele. Por isso a incompletude da autoria perpassa necessariamente o seu processo de criação, do nosso ponto de vista teórico, de textualização.
Entre outros profissionais, contribuem, para a formulação dos sentidos no audiovisual, o montador, o diretor de fotografia, o sound design, o roteirista. Mas, a improvisação e a surpresa envolvem a todos os membros da equipe no processo de textualização fílmica. As variadas formas de lidar com tal incompletude ainda merecem um trabalho que busque suas regularidades. Mas assim como o texto escrito ou falado excede o que se pretende dizer, nessa projeção há configurações, o que interessa é o percurso nessas formulações, sem uma intenção prévia. O que interessa discursivamente são as reescritas. A intenção é imaginária. Cada vez que pensamos o que queremos, as intenções mudam, são sempre formulações que extravasam. A intenção já é uma formulação da vontade. O sujeito não sente e pensa fora da linguagem. Esta é deriva e possibilidade do sentido vir a ser outro a todo momento, mesmo com toda a ilusão de referencialidade que a imagem parece determinar. Algo sempre significa além, significa de outro jeito, significa de outro modo, imprevisto e surpreendente. A história irrompe no dizer, no significar. As memórias outras se atrelam, criando efeitos de sentido que, de desconexos, produzem sentidos outros, conectados. Quando num filme se produz o efeito de fecho, a ilusão de que se disse o que se queria dizer? Um diretor sabe o que ele quer antes de estar pronto? Pela diferença entre os tratamentos de roteiro e a descrição da decupagem, percebemos que à medida que se vai compondo esse texto, vai dando conta do que se quer. E ainda assim, serão necessários muitos outros filmes para tentar dizer ou mostrar o que se queria. Quantos galos são necessários para se tecer uma manhã?
Não temos processo simbólico fora da linguagem. Ao se dar o próprio trabalho de composição, esta vai se configurando para o sujeito. Somos afetados pela ilusão de que ela estava lá antes. Formulações desorganizadas que começam a demandar sentidos. A sensibilidade afetada, olha o sentido e simboliza de várias formas, formulando. Cada uma demanda uma forma material diferente. Assim, toda textualização é um trabalho que se dá na cadeia significante, sempre em movimento. O roteiro, as filmagens, a montagem, a finalização, a exibição, os cortes feitos pelo diretor, pelo montador, pelos produtores, o efeito nas salas de exibição, na crítica especializada, a transformação da película finalizada em dvd ou em filme para a televisão. Extrapolar de significações. Eterna incompletude de sentido. Processo eterno. Parece que a incompletude de sentidos no audiovisual se faz com maior violência e caos poético. É o confronto da angústia de significar, de estar na injunção de dizer, de tudo dizer, de dizer muito, de implodir a seqüencialidade do verbal, sua lógica linear e excludente. Nesse processo de criação de sentidos, se explora a visão, a audição. Se penetra nos poros, nas emoções do sujeito e se dá uma fisicalidade ao imaginário, se projeta aquilo que provoca no sujeito reações fisiológicas e afetivas diversas.
Essa densidade, esse inundar de sentidos, nos leva ao riso, ao choro, ao medo, ao arrepio, às tensões e distensões dos músculos. A uma respiração afetada pelo áudio e pelas imagens. O imaginário coordenado pela exposição ao filme ressoa com tantas outras imagens. Vividas. Desejadas. Fantasiadas. Memórias e antecipações.
Relações de sentido que o audiovisual manifesta: tudo dizer, tudo significar, breve ilusão da completude, compartilhada com os seres humanos. Em alguns roteiros encontramos formulações como “ouvimos o barulho”, “vemos o rosto angustiado”. Nesse corpus, predomina a descrição que ser quer direta. O nós é igual a todo mundo: a comunhão universal e irrefutável, onde não há língua, onde não há diferença, onde não há divisão. Só indistinção. A onipotência, a onisciência, a onipresença. A memória histórica que o funcionamento da imagem e do som faz perceber remete a colocar-se no lugar do outro, olhar pelo outro, ver o outro, ver pelo outro. O cinema se constitui na reunião da pintura, da música, da literatura, do teatro. Por isso, parece que o sujeito do discurso no audiovisual é constituído sobretudo pelo sagrado. O articulador simbólico aqui remete aos deslizes metafóricos que constituem o sujeito: Deus, o caçador, o herói, o líder, o pajé, o sacerdote, os pais, o rei, o Estado, a Ciência, o mercado, o individualismo, a arte, o cinema: tudo dizer, tudo significar, estar na completude de novo. Ilusão irremediável, movedora, desejante, sede insaciável. Por isso, o gozo da significação.
Referências Bibliográficas
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Referência Audiovisual
Central do Brasil, de Walter Salles Jr., filme em DVD. Rio de Janeiro: VídeoFilmes, 112min,1998.