A noção de Forma Material na Análise de Discurso Materialista

                 por Luiz Carlos Martins de Souza
(doutorando em Linguística/Análise do Discurso Fílmico pela Unicamp. Bolsista RH-Doutorado da FAPEAM. Professor do curso de Letras da UFAM)


    A teoria materialista do discurso procura analisar a determinação histórica dos processos de significação. A questão principal da AD em relação às outras abordagens, como o conteudismo, é esse ponto de vista materialista e as conseqüências epistemológicas, metodológicas, portanto analíticas que daí advêm. As abordagens conteudísticas esbarram na dicotomia forma/conteúdo, e se inscrevem numa perspectiva idealista.
    Para a AD, pela noção de forma material, se compreende a materialidade do sentido, como um processo histórico de significação em que o sujeito, a história e a linguagem, estão materialmente pensados e implicados. Podemos dizer a mesma coisa, usando as mesmas formas linguajeiras e no entanto, significarmos diferente. Esse processo resulta das diferenças entre o complexo das formações discursivas, por isso precisa ser compreendido nas relações estabelecidas pelos sentidos.
    Essa noção não se confunde com a forma empírica, que é o produto, a realidade resultada do processo, pensada isoladamente. Tampouco se confunde com a forma abstrata, que é o elemento de um sistema, a língua funcionando em si mesma, autonomamente, fora do seu contexto, como concebem os estruturalistas. A forma material refere-se, portanto, à língua funcionando na história, na sociedade, no funcionamento do sujeito: uma forma linguístico-histórica. 
    A historicidade pode ser compreendida, na AD, observando como os sentidos se constituem num texto, como os gestos de interpretação vão constituir uma textualidade em sua materialidade. Mas para se pensar a historicidade desse ponto de vista materialista, é preciso pensá-la na forma material:  historicidade como um processo que constitui uma forma em relação a outra, que poderia estar em seu lugar. Assim, se compreende a língua não só como uma estrutura, mas, sobretudo, como acontecimento. A forma material é o acontecimento do significante em um sujeito afetado pela história. Estrutura e acontecimento.   
    Vou procurar neste capítulo retomar alguns conceitos essenciais que caracterizam o Materialismo e resumir o trajeto da formulação da noção de forma material na teoria, a partir dos esclarecimentos de Orlandi (2007). Meu objetivo principal é propor a compreensão dessa noção no funcionamento de produtos audiovisuais, numa perspectiva que se apossa da noção de linguagem para explicar fenômenos de sentido que não se confundem nem tampouco se reduzem ao verbal.
   
 Matéria em Aristóteles

    Desde os gregos, o conceito de forma se correlaciona e se contrapõe à matéria. Apesar de ser disputado entre Platão, Aristóteles e os estoicos, podemos simplificar dizendo que o termo grego para matéria é hyle, uma noção ligada à matéria prima, aquilo com  que o homem molda as obras de sua habilidade artística, como a madeira ou a pedra.  A forma ou a figura é um trabalho sobre a matéria, sua elaboração. 
    Assim, para Aristóteles, a característica fundamental da matéria é a receptividade da forma. Matéria é tudo aquilo capaz de receber uma forma. Por isso a matéria é substrato primário da mudança, potência de ser algo, que se contrapõe a este algo, à forma, ao ato, à presentificação da matéria. Os atos envolvidos em mudanças são a forma. A forma é um tipo particular de ato; e a matéria um tipo particular de potência, subjacente e sobrevivente a todas as mudanças, substanciais ou acidentais. ou seja, a matéria possui a capacidade para sofrer uma mudança substancial: quando uma substância de um certo tipo se transforma numa substância de outro tipo.
    Portanto, matéria é, em Aristóteles, o que permanece a mesma coisa ao longo da mudança, assumindo várias formas; aquilo que é movido, sem se mover a si mesmo. A forma substancial é a substância que, apesar de sofrer uma mudança acidental, sempre retém a mesma forma ao longo da mudança.
    Apesar da noção de matéria nos textos aristotélicos se confundir com substância, seus exegetas defendem que seria algo além, algo comum a todas as substâncias, uma espécie de matriz da realidade física e não a própria realidade física. A matéria, enquanto substância e sujeito, é a possibilidade mesma do movimento. O movimento é a mudança da substância em uma forma. A matéria como potência e o ato, como forma de determinação da substância.   
    Assim, a matéria seria o princípio de individuação das coisas materiais, aquilo que faz as coisas serem indivíduos de uma categoria particular. A matéria-prima não poderia existir sem forma: não precisa de assumir uma forma específica, mas tem de assumir uma forma qualquer. As formas dos corpos mutáveis são todas formas de corpos particulares; é inconcebível que exista uma forma que não seja a forma de um corpo qualquer. Formas são logicamente incapazes de existir sem os corpos dos quais são as formas. Ao se afirmar a forma de A,  se afirma que uma substância é A.
    Até pouco tempo, a Química reduzira a noventa e duas, as matérias primitivas, encontradas na natureza. O debate acerca da essência da matéria desde a Filosofia Clássica refere-se principalmente a estes elementos primitivos. Atualmente, com os avanços da Física Quântica, se assume que a mesma matéria se manifesta ora como corpúsculo, ora como onda.

Matéria e Materialismo Histórico: o real da história

    A concepção materialista da história é um dos desenvolvimentos da concepção aristotélica de matéria. O Materialismo Histórico inverte a concepção idealista que atribui as mudanças históricas e sociais a fatores culturais, sejam eles políticos, filosóficos, artísticos ou religiosos,  e aponta que os desenvolvimentos e as mudanças na história humana são provocados pelas forças produtivas sociais e suas relações de produção, chamadas de determinações práticas, tecnológicas ou materiais, no modo de produção da vida material:

“na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. E do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência. Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre, que esses objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a rua realização.” (Marx, 1982, prefácio da Contribuição...)

    Em Marx, as forças produtivas são os meios de produção e a força de trabalho, ou seja, são todos os elementos concretos nas sociedades que contribuem para modificar a natureza e produzir bens materiais para satisfação das necessidades sociais. Seres humanos com suas capacidades produtivas físicas e intelectuais, as tecnologias, a ciência, os métodos de produção e todos os meios que as sociedades utilizam para produzir são forças produtivas.
    Como vimos acima, o conjunto das relações que os homens contraem para produzir sua vida em sociedade formam a base econômica dessa sociedade, a base da estrutura política e jurídica e são essas relações de produção que condicionam a consciência dos homens, ora desenvolvendo suas forças produtivas, ora impedindo esse desenvolvimento, independentes da escolha humana.
    Marx chama o conflito e o choque entre as forças produtivas materiais e as relações de produção, de “contradições da vida material”. Segundo Gadet & Pêcheux, este é o real da história: “o Materialismo Histórico pretende basear-se em uma percepção desse real como contradição.” (Gadet & Pêcheux, 2004, p.35)

[Há formas ideológicas de tomada de consciência desse conflito e de luta para resolvê-lo?]


A Materialidade da Língua, o real da língua e a forma material na AD

    Dentre outros, Pêcheux e Orlandi, partir de releituras de Hjelmslev, Lacan e Milner, apossando-se da noção de contradição como a materialidade da história, - portanto, como o real não transparente da história-, desenvolvem a noção de materialidade do discurso e de real da língua para a Análise de Discurso Materialista. Referencio a seguir o propalado entremeio entre Materialismo, Psicanálise e Linguística nesta Análise de Discurso.
   
Forma, substância e matéria no estruturalismo de Hjelmslev

    Vimos acima que em Aristóteles a matéria pode ser compreendida como (mas não restringida a) substância suscetível de receber uma forma. A matéria, sendo uma espécie de matriz da realidade física, ou seja, uma potência, é algo comum a todas as substâncias. Matéria é ao mesmo tempo substância e sujeito, é a possibilidade do movimento. O movimento é a mudança da substância em uma forma. A forma como o ato, a manifestação da matéria, portanto a determinação da substância.
    Um dos caminhos para a construção da noção de forma material na AD, segundo Orlandi (2007, 22min), é o trabalho de Hjelmslev sobre matéria e forma material, tentando desfazer o platonismo saussureano que estabeleceria o pensamento, ou seja, uma substância do conteúdo, e a substância fônica pré-existentes ao aparecimento das línguas.
    Cristhian Metz(1980) sintetiza a posição do estruturalista Hjelmslev sobre isso e aqui vamos relacioná-la a essa concepção aristotélica. Ele reproduz a noção de que cada linguagem tem propriamente uma matéria da expressão, ou uma combinação específica de várias matérias da expressão, que é o caso do cinema, preocupação precípua dele:
“Hjelmslev diz que a substancia não é amorfa, que é o estrito correlato da forma, e é, portanto, sempre formada (p. 76); existe certamente, acrescenta ele (p. 74-75), uma instância amorfa, independente da forma e que existe ‘antes’ dela, mas não é a substancia, é o sentido: sentido do conteúdo (ou ‘sentido’ simplesmente) e sentido da expressão (p. 80)”. (Metz, 1980, p.248).

    A potência, a matéria em Aristóteles, é o sentido em Hjelmslev. Aquilo que seria comum, a matriz para todas as substâncias, para todas as línguas, e, na perspectiva de Metz, para todas as linguagens.  Metz, ainda comentando Hjelmslev, diz:

“que a forma é uma pura rede relacional, que a matéria(aqui batizada de ‘sentido’) representa a instância inicialmente amorfa na qual se inscreve e se ‘manifesta’ a forma, e que a substância é o que surge quando se projeta a forma sobre a matéria ‘como uma rede esticada projeta a sua sombra sobre uma superfície ininterrupta’ (p. 81)”, (Metz, 1980, p.248)

    Poderíamos retomar a formulação de Aristóteles e dizer que o sentido, sendo potência, a matriz comum se encarna em uma forma. Esse processo, esse movimento entre a potência e o ato, a concretização da potência, Hjelmslev chama de substância:
“A substância nada mais é que o resultado do encontro entre a forma e a matéria; a substância não tem nada de própria: extrai sua natureza da matéria (assim, nas línguas naturais, a substância da expressão é o som fônico, isto é, ela se confunde por sua natureza física com a matéria da expressão, que é também o som fônico), e ela extrai sua organização relacional da forma: sabe-se, com efeito, que para Hjelmslev a substância (considerada, pelo menos, do ângulo semiológico) não possui uma forma especial: a forma que ela tem é a que lhe é imposta - em todos os sentidos da palavra - pela ‘forma’ apenas, que é a única forma semioticamente existente.” (Metz, 1980, p.249)

    Isso vai nos ajudar mais adiante a pensar a forma material do audiovisual. Mas por ora, é preciso entender que esse processo entre uma potência, uma possibilidade de se transformar em ato, que não é nem o abstrato, nem o empírico, é o que foi formulado na AD, como forma material. Metz resume a relação entre matéria, substância e forma:
“a substância assim entendida não constitui uma terceira instância que viria juntar-se à forma e à matéria, simplesmente é o que surge quando uma forma vem organizar uma matéria, ou quando uma matéria é organizada por uma forma. A substância, diz ainda Hjelmslev (p. I I 76 dos Prolégomenes), não é diferente da matéria (aqui denominada "sentido"), pois é próprio da matéria nunca aparecer senão como a substância de uma forma; contudo, a substância se distingue logicamente da matéria (p. 76), pois denomina-se "substância" à matéria já formada, ao passo que o termo "matéria" (ou "sentido") designa, por definição, uma instância ainda não formada (= "amorfa" para Saussure); o resultado da imposição de uma forma é transformar a matéria em substância (p. 76).”(Metz, 1980, p.250)

    Se para Saussure, a língua é aquilo que na linguagem é uma instituição social, exterior ao indivíduo, autônoma, com suas regras próprias, que não podem ser alteradas por um indivíduo, Hjelmslev vai chamar isso de esquema, evitando, segundo Barthes(1977), chamar de sistema, pattern ou armação, e vai diferenciá-lo de norma e de uso. Independente da manifestação individual, a norma seria a generalização coletiva do uso, essa manifestação.

    O objeto da Fonética seria estudar os sons puros, e o da Fonologia  a realização desses sons numa língua, sua forma material, para Hjelmslev:
“...a língua como ‘esquema’ corresponde à forma pura, e a língua como ‘norma’ à forma material; as pesquisas da Fonologia se referiam, aos olhos de Hjelmslev, à ‘forma material’ (ou à ‘norma’) do plano da expressão, isto é, o lugar que não é nem forma pura nem matéria pura, mas muito precisamente substância no sentido definitivo que, a nosso ver, o autor dava a esta noção...”. ( Metz, 1980, p.250)

 Como nos diz Beividas:
“...ao invés de postular a existência de massa amorfa precedente às línguas, da qual estas se vão apropriando, pelas suas articulações, de determinadas porções, Hjelmslev procura inferir a existência (metodológica e operacional) de um fator comum, o sentido, às várias realizações lingüísticas, após uma comparação entre essas e uma abstração dos princípios que as estruturam nos seus específicos sistemas lingüísticos” (Beividas, 1983, p.3-4)

    Hjelmslev tem uma perspectiva dedutiva ainda tributária ao Idealismo. O sentido de “forma material” em Hjelmslev não é o mesmo que na Análise de Discurso Materialista. Para isso é preciso pensar o sentido não como uma substância abstrata que se encarna nas línguas e nas linguagens, mas como materialidade. A estrutura da linguagem não é autônoma, como pensavam os estruturalistas. Não é um sistema imanente de signos,
“caracterizados por una relación estable y determinada entre significado y significante, donde el significado, trascendental y literal, escaparía al juego del valor, de la diferencia. No hay un significado trascendental y literal que permanezca en la interioridad de la lengua; de hecho, no hay un significado específicamente lingüístico, sino “sentidos”, “cargas de sentido”, emergentes, digamos, de lo simbólico y de lo real-histórico, sujetos al juego de la différance. La significación, el sentido, no escapa al juego de los significantes, y es allí, en ese juego de remisión de significantes a significantes, donde debe comprenderse tanto el funcionamiento de la metáfora (un término por otro) como el del equívoco.” (Milán-Ramos, 1999, p.4)
   
    Como disse no início desse capítulo, a forma material na AD é o acontecimento do significante em um sujeito afetado pelo real da história. Na AD, a historicidade não se restringe ao fato de que o sentido tem uma história, mas diz respeito, sobretudo, aos fatos reclamarem sentidos: a contradição da vida material se torna contradição constitutiva do sujeito e do funcionamento da língua em que se processa uma injunção a dar sentido, a interpretar. As condições socio-históricas, para além de serem o contexto ou o exterior da língua, constituem as significações de um texto. Por isso se diz que  Materialismo, Psicanálise e Linguística pressupõem esta AD.

    Diante de qualquer objeto simbólico, o sujeito (ou o indivíduo? sujeito = ego?)  se vê nessa injunção à interpretação, é preciso encontrar (ou dar) respostas ao que o objeto simbóligo significa. O sentido, então, aparece como um conteúdo já-lá, como evidência. Ao se dizer, interpreta-se, mas essa interpretação tem sua espessura, sua materialidade.

 Do real em Lacan para o real da língua

    O real em Lacan é o que resiste à simbolização, o que escapa da realidade, é o que está excluído do sentido, o impensável e o impossível, é uma exterioridade íntima no sujeito, comum à realidade subjetiva e à realidade física: “o real é o nome do hiato entre os significantes do sonho e a realidade observável ao despertar, o encontro faltoso entre os dois” (Porge, 2006, Porge, p.127). É um gozo suposto. O real participa da determinação do sujeito como determinação exterior que se interioriza irremediavelmente em nós. Essa concepção da Psicanálise se institui na Análise de Discurso.
    Lacan diz que lalangue veicularia o real, enquanto a linguagem, por ser estruturada, seria uma defesa contra o real. Alíngua ou lalangue, em Lacan, tem a ver com uma satisfação da relação da mãe com a criança, na brincadeira com os sons e no jeito de transmitir a língua materna, tecendo um esboço de laço social no sujeito, para sempre.  Por isso lalangue remete também à língua dos amantes, da magia, à glossolalia, ao delírio, à musicalidade, quando a palavra está fora da significação, e é apenas um fluxo polifônico, algo tão somente do domínio onomatopaico:

“Je fais lalangue parce que ça veut dire lalala, la lallation, à savoir que c’est un fait que très tôt l’être humain fait des lallations, comme ça, il n’y a qu’à voir un bébé, l’entendre, et que peu à peu il y a une personne, la mère, qui est exactement la même chose que lalangue, à part que c’est quelqu’un d’incarné, qui lui transmet lalangue”. (Jacques Lacan: Conférence donnée au Centre culturel français le 30 mars 1974.)


    É pela lógica da fantasia, pela brincadeira com e pelas falhas da língua, que a libido é elevada ao patamar desse gozo suposto, do real. Na lalangue não se quer dizer, se é tomado pelo eco homofônico e translinguístico que despista, anula e multiplica o significado.
    Partindo dessa concepção lacaniana, Milner defende que a materialidade da língua está no fato de que, na sua ordem, na sua estrutura, há um impossível inscrito e que sustenta a divisão entre correto e incorreto em toda língua. Há o impossível de dizer, e, ao mesmo tempo, o impossível de não dizer de uma determinada maneira.  O nonsense, a loucura e a poesia fazem parte da estrutura da língua e de seu funcionamento. Dessa forma Gadet & Pêcheux relacionam real e equívoco, definindo a língua como “um sistema que não pode ser fechado, que existe fora de todo sujeito, o que não implica absolutamente que ela escape ao representável” (Gadet & Pêcheux, 2004, p.63). Esse é o real da língua, é essa sua materialidade, esse exterior que se interioriza, constituindo o sujeito. O sintoma desse real é a irrupção do agramatical, do absurdo:

“o real da língua não é costurado nas suas margens como uma língua lógica: ele é cortado por falhas, atestadas pela existência do lapso, do Witz e das séries associativas que o desestratificam sem apagá-lo. O não-idêntico que aí se manifesta pressupõe a alíngua, enquanto lugar em que se realiza o retomo do idêntico sob outras formas; a repetição do significante na alíngua não coincide com o espaço do repetível e que é próprio à língua, mas ela o fundamenta e, com ele, o equívoco que afeta esse espaço: o que faz com que, em toda língua, um segmento possa ser ao mesmo tempo ele mesmo e um outro, através da homofonia, da homossemia, da metáfora, dos deslizamentos do lapso e do jogo de palavras, e do bom relacionamento entre os efeitos discursivos.”(id, p.55)

    É por essa noção de materialidade da língua que a AD atesta esse vínculo entre inconsciente e ideologia, portanto, a inscrição do político no simbólico:
“A dificuldade do estudo das línguas naturais provém do fato de que suas marcas sintáticas nelas são essencialmente capazes de deslocamentos, de transgressões, de reorganizações. É também a razão pela qual as línguas naturais são capazes de política.” (Gadet & Pêcheux, 2004, p.24)

    Mais adiante, Gadet & Pêcheux sintetizam esse encontro entre a língua e a história, em que o sentido se produz no interior do não-sentido, fundamental para que se compreenda a noção de forma material na Análise de Discurso:
    “...o equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em que a língua atinge a história.
    A irrupção do equívoco afeta o real da história, o que se manifesta pelo fato de que todo processo revolucionário atinge também o espaço da língua” (id., p.64) 

    Assim nessa AD, a realidade é essa elaboração possível e possibilitada do real, essa interpretação que nos faz experienciar o sentido, sempre dividido, descontínuo, disperso, contraditório e incompleto,  como se ele fosse evidente, único, coerente, claro, distinto, controlável e completo. Esta divisão do sentido tem uma direção dada pelas “injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história.” (Orlandi, 1998, p.74)

A materialidade dos sentidos: Análise de Discurso Materialista x Análise de Conteúdo

    Ressaltei que, diferente da análise linguística que trabalha com as marcas formais,  a Análise de Discurso Materialista, pela noção de forma material, reúne forma-e-conteúdo, manifestando a relação entre ordem significante e história.
    As formas materiais são as formas que a articulação ideologia-inconsciente assume em determinadas condições de produção e circulação dos discursos. Essa é a relação material entre linguagem e exterioridade. Entender as propriedades discursivas como materialidade significa entender como a contradição da vida material se torna (é também?) contradição constitutiva do sujeito e do funcionamento da língua(gem), como afirmei acima, me inscrevendo nos sentidos da teoria.
    Para estar no mundo, estabelecer relações, produzir a vida, e dar sentido, o sujeito se submete à linguagem, significa(-se). Esse movimento sócio-historicamente situado reflete sua interpelação pela ideologia e, na teoria, é chamado de gesto simbólico, gesto de interpretação que se materializa nos produtos simbólicos, nos textos. As noções de ‘efeito metafórico’ e de ‘gesto de interpretação’ são os mecanismos com os quais o analista lida e opera para intervir nesse real do sentido, para descrever e interpretar o que é estabilizado e o que é sujeito a equívoco num funcionamento discursivo. Esses pontos de deriva e os deslizamentos de sentidos são submetidos à análise através  de procedimentos como a paráfrase e as substituições contextuais.
    Assim, a Análise de Discurso Materialista relaciona língua/sujeito/história, mostrando como  ideologia e inconsciente estão implicados. O sujeito não tem o domínio de como os sentidos se formam nele, de como ele experimenta, se filia e reproduz alguns sentidos, em detrimento de outros. Por isso a linguagem tem sua materialidade, sua ordem própria; não é um mero instrumento de comunicação.
    Uma das primeiras etapas na análise se chama processo de de-superficialização linguística: a análise da materialidade linguística, a forma que a materialidade assume na sintaxe e no processo de enunciação, em que o sujeito se marca ao dizer, fornecendo pistas para a compreensão do modo como o discurso se textualiza: o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias, o como, o onde, o porquê
“Os textos, para nós, não são documentos que ilustram idéias pré-concebidas, mas monumentos nos quais se inscrevem as múltiplas possibilidades de leituras. Nem tampouco nos atemos aos seus aspectos formais cuja repetição é garantida pelas regras da língua - pois nos interessa sua materialidade, que é linguístico-histórica, logo não se remete a regras mas as suas condições de produção em relação à memória, onde intervém a ideologia, o inconsciente, o esquecimento, a falha, o equívoco. O que nos interessa não são as marcas em si mas o seu funcionamento no discurso. É este funcionamento que procuramos descrever e compreender. (Orlandi, 1999, p.65)

    O modo como o texto materializa as relações de poder em sua estrutura significante é o modo que se dá a textualização do político, deste ponto de vista discursivo. Aqui também se compreende melhor essa diferença entre real e realidade:
A exterioridade não tem a objetividade do "fora" da linguagem, ela é aqui tomada tal como intervem na textualidade. Ela é exterioridade discursiva e não é empírica. É o interdiscurso definido em sua objetividade material contraditória (M. Pêcheux, 1995): algo fala sempre antes, em outro lugar, independentemente, isto é, sob o domínio complexo da ideologia. Isto propicia ao sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações experimentadas. (...) o discurso se constitui assim nessa instância dos já ditos ou dos dizeres possíveis que é garantia da formulação do dizer. É este jogo entre formulação e constituição que produz o efeito de exterioridade, do sentido-lá. Paralelamente, esse jogo torna possível a relação entre o real e a realidade, sendo o real função das determinações históricas das condições materiais do discurso e a realidade a relação imaginária dos sujeitos com essas determinações tal como elas se apresentam no discurso, em um processo de significação pelos dois esquecimentos: o que produz no sujeito a impressão de estar na origem do sentido e o que produz a impressão da realidade do pensamento (coincidência entre pensamento/ linguagem/ mundo).
   
    Orlandi esmiúça a relação entre a situação empírica, a concepção estruturalista e a materialidade discursiva:
"O sujeito é um lugar de significação historicamente constituído, ou seja, uma "posição. Essas posições, como sabemos, correspondem, mas não equivalem, à simples presença física dos organismos humanos (empiricismo) ou aos lugares objetivos da estrutura social (sociologismo). São lugares "representados" no discurso, isto é, estes lugares estão presentes, mas transformados nos processos discursivos. Há, nos mecanismos de toda sociedade, regras de projeção que estabelecem relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações) nos discursos (M. Pêcheux, 1969). São pois formações imaginárias - designando lugares que os locutores se atribuem uns aos outros - que constituem as tais condições de produção dos discursos (Ia(b), Ia(r) etc.). É preciso acrescentar que este imaginário não é de natureza fenomenológica, mas discursiva: ‘não há apreensão perceptiva do referente, do outro e de si mesmo como condições pré-discursivas do discurso, supomos que a percepção é sempre atravessada pelo já ouvido e o já dito através dos quais se constitui a substância (nós diríamos a ‘matéria’) das formações imaginárias’ (M.Pêcheux, idem)” (Orlandi, 1998, p.3)

    Nessa citação do texto de Pêcheux, vemos como a compreensão de ‘substância’ das formações imaginárias passam a ser ‘matéria’ em Orlandi, deslocamento necessário para firmar uma teoria consequente com o Materialismo. Noutro momento, Orlandi esclarece sobre a diferença entre pensar a língua como sistema abstrato, formal e autônomo; e pensá-la materialmente, como um sistema relativamente autônomo e falho, sendo essa a potência constitutiva de toda e qualquer ordem simbólica, e o equívoco, a forma que essa matéria,  assume:
“Quando dizemos que o sujeito, para se constituir, deve-se submeter à língua, ao simbólico, é preciso acrescentar que não estamos afirmando que somos pegos pela língua enquanto sistema formal, mas sim pelo jogo da língua na história, pelos sentidos. É o acontecimento do objeto simbólico que nos afeta como sujeitos. Algo do mundo tem de ressoar no ‘teatro da consciência’ do sujeito para que faça sentido. À diferença da posição imanentista de alguns lingüistas e psicanalistas, que fazem o elogio da língua enquanto sistema abstrato, eu coloco que o indivíduo poderia ficar indiferente à língua. Há condições para que ela surta seus efeitos. Não se trata apenas de um jogo de significantes descarnados, embora a língua como sistema significante importe e muito. Para ressoar, é preciso a forma material, a língua-e-a-história. Algo do plano da existência produz essa possibilidade junto ao que dá linguagem. E em que sujeito e sentido se constituem. Se, de um lado, a linguagem tem sua parte na injunção a significar, de outro, o mundo exerce sua força inexorável.(...) A língua é capaz de falha. Essa possibilidade - a da falha - é constitutiva da ordem simbólica. Por seu lado, o equívoco já é fato de discurso, ou seja, é a inscrição da língua (capaz de falha) na história que produz o equívoco. Este se dá portanto no funcionamento da ideologia e/ou do inconsciente. O equívoco é a falha da língua, na história.

    Ao propor que não há sentido que não tenha sido produzido em condições específicas, em uma relação com a exterioridade, com uma direção histórico-social que se produz em relações imaginárias, derivadas de um trabalho simbólico, a AD Materialista critica as posições teóricas conteudísticas porque elas esbarram no e reproduzem, sem se questionar, o efeito ideológico da ilusão de conteúdo.   Nessas perspectivas, o conteúdo é extraído do que estaria além da forma abstrata lingüística. Interpretando a partir do conteúdo dado, o sujeito está afetado pelo trabalho da ideologia, que apaga a produção discursiva do referente, e nos faz submergir no efeito de unidade, do sentido-um, o sentido literal, já lá, uma construção imaginária do funcionamento simbólico.  Em nossa perspectiva,

“...as condições de produção constituídas pelas formações imaginárias são atravessadas (determinadas mesmo) pelo interdiscurso, exterioridade constitutiva, saber discursivo, não datado, não representável. As circunstâncias imediatas da enunciação já são determinadas por esta exterioridade e elas funcionam de forma desigual no discurso. A significância do contexto é delimitada pelo já- dito que con-forma o conjunto da situação que intervem no dizer. É só o que conta para o sentido "x" (efeito de pre-construído) que faz parte das condições de produção imediatas. (...) o trabalho do contexto não é nem direto nem automático, o que desloca a forma como a pragmática considera o texto. Este não é tampouco empírico, mas histórico, submetido, pois, às exigências da materialidade lingüístico-discursiva e à relação do simbólico ao imaginário.” (Orlandi, 1998, p.76)

    Todo sujeito de um discurso experimenta e antecipa o lugar do seu interlocutor, a partir de seu próprio lugar.  Escrevo esse texto afetado pelas minhas questões e pela interpretação que faço dos meus interlocutores, que vão além do domínio e controle que tenho sobre tal interpretação. Essa é a estratégia do discurso. Ela se fundamenta na antecipação das representações do outro, o que Pêcheux(1969) chama de jogo das formações imaginárias: a imagem que o sujeito faz do assunto, de si mesmo, do outro. Cada um prevê as expectativas de seu interlocutor. Esta antecipação do que o outro vai entender é constitutiva de todo discurso. [SUJEITO É EGO?]

"As intenções - que derivam do nível da formulação - já foram determinadas no nível da constituição do discurso em que as posições do sujeito já foram definidas por uma relação desigual e contraditória com o dizer. As intenções são assim produtos de processos de significação aos quais o sujeito não tem acesso direto. As filiações ideológicas já estão definidas e o jogo da argumentação não toca as posições dos sujeitos, ao contrário, deriva desse jogo', o significa. Se a argumentação é conduzida pelas intenções do sujeito, este tem no entanto sua posição já constituída e produz seus argumentos sob o efeito da sua ilusão subjetiva efetada pela vontade da verdade, pelas evidências do sentido. Os próprios argumentos são produtos dos discursos vigentes, historicamente determinados. Eles também derivam das relações entre discursos e têm um papel importante nas projeções imaginárias do nível da formulação, das antecipações. (Orlandi, 1998, p.78-79)

    Sem um embate, sem um recuo necessário que faça aparecer o equívoco, a abertura do simbólico funcionando numa memória que fala antes da nossa fala, através dela, estruturando sua organização e suas intenções, se sucumbe completamente à transparência da linguagem, ao trabalho da ideologia, às evidências já dadas.

    A materialidade do sentido está no fato de que ele é determinado pelas formações discursivas sustentadas nas e sustentadoras das relações de produção dos sujeitos e da vida.  A discursividade são os efeitos da língua sujeita a falhas que se inscreve na história. A mudança acontece quando essa falha, que ressoa a história,  ressoa na história. A linguagem é repetição e deslocamento. Essa abertura irremediável do simbólico não se materializa de qualquer jeito. Mas e quando se pensa a materialidade do audiovisual, é a mesma falha? é o mesmo equívoco funcionando na textualização do som e da imagem? O gesto de interpretação nessas materialidades convergidas, reunidas, imbricadas se dá do mesmo jeito? No próximo capítulo tento elaborar  um gesto de interpretação para essas questões, pensando  nas implicações de se analisar a forma material audiovisual.

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